por Dr. Paulo Rodrigues
Fístula é a comunicação anômala (não-anatômica) do trato urinário para um órgão vizinho.
A saída involuntária de urina por este trajeto designa a fístula urinária.
A fístula urinária, normalmente, é resultado de um processo inflamatório ou dissecção cirúrgica inadvertida, que permite que as bordas de 2 órgãos diferentes, que deveriam se manter separados; comuniquem-se por um canal que permite a passagem da urina do trajeto urinário para outro órgão (vagina, ureter, intestino, etc); que normalmente não trafegaria urina.
Enquanto nos países sub-desenvolvidos a fístula vésico-vaginal origina-se pela compressão da cabeça da criança contra as paredes da vagina hiper-distendida durante o trabalho de parto, causando necrose e um ponto de comunicação entre a bexiga e a vagina, nas demais circunstâncias, 82% das fístulas resultam de cirurgias ginecológicas, durante as quais a bexiga ou o ureter podem ter sido inadvertidamente lesados durante a dissecção cirúrgica.
Estima-se que 0,33% das cirurgias ginecológicas apresentarão lesões urológicas, com consequente possibilidade de formação de uma fístula, por lesão da bexiga ou ureter. Em até 15% dos casos, há fístulas concomitantes, isto é; fístulas vésico-vaginal e uretero-vaginal associadamente.
Nas cirurgias de Histerectomias (cirurgia para a retirada do útero), necessárias para o tratamento, sobretudo de condições benignas; tais como miomas, sangramento vaginal excessivo, endometrioses, doença inflamatória pélvica, etc; a dissecção do útero produz lesões cirúrgicas inadvertidas da bexiga ou do ureter em 0,05% a 2% dos casos.
Casos em que a pélvis tenha sido irradiada, constituem-se em casos de mais alto risco para a formação de fístula, pois os tecidos são mais isquêmicos e propensos a cicatrização mais prolongada e difícil.
Muitas vezes, durante a cirurgia há lesões (lacerações) não diagnosticadas na bexiga, e que promoverão a saída da urina pela vagina na fase de recuperação pós-operatória.
Lesões isquêmicas na bexiga, pelo uso excessivo ou inadvertido de bisturi elétrico, durante a dissecção dos tecidos, também podem ser fator contribuinte, promovendo necrose avascular e permitindo comunicações anômalas entre a bexiga e a vagina, em mais de um ponto.
Hematomas pélvicos também podem contribuir para a formação de fístulas, pois estes bolsões de coleções sanguíneas procuram trajetórias fáceis para drenarem seus conteúdos, e os locais de sutura (costura) são naturalmente zonas de mais susceptíveis de rupturas de tecidos e drenagem de líquidos pélvicos.
Pacientes tratados com irradiação por câncer de colo uterino constituem um grupo particular de casos sujeitos a fístulas urinárias, pois têm tecidos isquemiados, com comprometimento da vitalidade dos tecidos, e portanto, mais sujeitos à dificuldade de cicatrização.
Apresentação Clínica
A maioria dos pacientes que formarão fistulas apresentam um período pós-operatório conturbado, com dores abdominais, febre e íleo paralítico (demora para o retorno das funções intestinais), que precede o aparecimento clínico do vazamento urinário pela vagina.
A saída contínua de urina pela vagina é o sintoma clínico mais relevante do diagnóstico de fístula vésico-vaginal, que pode ser erroneamente interpretada pela paciente ou pelo médico, como incontinência urinária.
A presença constante de urina na vagina pode causar cheiro forte de amônia, irritação da mucosa vaginal e dermatite perineal de difícil controle.
Diagnóstico
Em quase todos os casos, o diagnóstico é óbvio; e uma simples inspeção da vagina pode determinar o local (orifício) do vazamento urinário, mas exceções podem existir; quando por exemplo o orifício é muito pequeno, e a saída de urina, pequena ou mínima; leva o examinador e a paciente a confundi-la com secreção vaginal.
O exame específico de impactação vaginal e injeção de contraste na bexiga, pode facilmente confirmar o diagnóstico.
Exames auxiliares, tais como cistoscopia (olhar dentro da bexiga), urografia excretora, e tomografia computadorizada, auxiliam na precisão diagnóstica e estratégia da terapêutica.
Considerações Diagnósticas
Fístulas vésico-vaginais após-histerectomias geralmente se localizam acima do trígono (supra-trigonais), e por isso, cirurgicamente são bastante trabalhosas para se tratar por via vaginal.
Técnicas Cirúrgicas
Os princípios básicos que norteiam o sucesso do fechamento das fistulas recomenda a ampla mobilização cirúrgica da bexiga e da vagina, de maneira a permitir que os orifícios (da bexiga e da vagina) sejam dissecados, isolados, separados e fechados com suturas firmes e bem posicionadas; após minuciosa mobilização cirúrgica dos tecidos viáveis ao seu redor.
De maneira geral, o sucesso cirúrgico do fechamento de fístulas urinárias em mãos experientes está ao redor de 90% (Raassen TJ et cols. Prospective results after first-time surgery for obstetric fistulas in East African women. Int Urogynecol J Pelvic Floor Dysfunct 19:73, 2007) (Nardos R et cols. Duration of bladder catheterization after surgery for obstetric fistula. Int J Gynaecol Obstet 103: 30, 2008)(Kelly J & Kwast B. Obstetric vesico-vaginal fistula: evaluation of failed repairs. Int Urogynecol J 4: 271, 1993).
Mais importante que tudo: muitos autores reconhecem que a primeira cirurgia é a melhor oportunidade para se fechar (curar) a fístula.
Observa-se que re-operações (2° ou 3° cirurgias) para o tratamento cirúrgico das fístulas urinárias recorrentes têm um sucesso menor, quando comparadas à primeira cirurgia.
Hilton relatou numa casuística de 2.500 casos que o índice de cura seria de 85% para a 1° cirurgia, mas que seria de somente 65% para as que tiveram mais de 1° cirurgia. Similarmente, o Hospital de Adis Abebba na Etiópia reportou um índice de sucesso de 92% para a 1° cirurgia, mas de apenas 50% para a 2° cirurgia, após falha.
A via vaginal é um alternativa atraente por evitar a re-abordagem do abdômen, normalmente já operado para a retirada do útero, ou para outras causas; e por permitir rápida recuperação (1 dia de hospitalização), com índice de 98% a 100% de sucesso.
A via abdominal (Técnica de O´Connor), com re-abertura da incisão abdominal, confere mais morbidade ao ato cirúrgico (média de 2 dias de hospitalização), mas permite uma visão direta do orifício através da bexiga.
Em casos de fístulas mais amplas, técnicas de enxerto e rotação de retalhos do abdômen ou da perna, podem ser necessárias para se cobrir ou interpor tecido necrótico no trajeto fistuloso.
Alguns estudos mostram que a utilização de retalhos auxiliares, que reforçam o defeito orificial da fístula, mostraram um nível de sucesso superior quando comparados aos casos em que o retalho não foi utilizado como reforço (Rangnekar NP et cols. Role of the martius procedure in the management of urinary-vaginal fistulas. J Am Coll Surg 191:259, 2000).
Nenhuma fístula é igual a outra e todas devem ser tratadas com gentileza e perspicácia cirúrgica, que é acumulada ao longo da vivência dos casos, claramente se observando que pacientes operados por cirurgiões acostumados a este tipo de doença, apresentam índices de cura melhores do que cirurgiões infrequentes.
Enquanto se reconhece que as fístulas apresentam, em mãos habilitadas alto índice de sucesso – fechamento da fístula, deve-se reconhecer que algumas pacientes, apesar do sucesso cirúrgico, medido pelo fechamento do trato fistuloso, ainda continuará perdendo urina na forma de incontinência urinária.
Esta realidade está intimamente relacionada à necessidade de reconstrução da uretra, haver necessidade de manobras relaxadoras e número de gravidezes experimentadas pela paciente em questão.
Índice de continência em 1.084 casos de Fístulas Urinárias tratadas cirurgicamente
Muitos fatores podem contribuir para que uma mulher continue incontinente após o tratamento de uma fístula urinária: lesões da musculatura pélvica, envolvimento ou destruição do colo vesical pela fístula, lesão aos tecidos de sustentação uretral, aparecimento de Bexiga Hiperativa, fibrose local, lesões aos nervos do assoalho pélvico, etc.
Em verdade, a simples manipulação cirúrgica do assoalho pélvico pode por consequência trazer alterações funcionais na bexiga, que só poderão ser caracterizadas com exames mais sofisticados, como o Estudo Urodinâmico (Hilton P. Urodynamic findings in patients with urogenital fistulae. Br J Urol 81:539, 1998).
Momento de Operar
No passado, muitos autores recomendavam esperar de 3 a 4 meses antes de operar as fístulas, pois se acreditava que as falhas cirúrgicas seriam decorrência da sutura do tecido inflamado e necrótico, envolvido no trajeto fistuloso, e que não permitiria uma cicatrização adequada.
Ainda que se reconheça que a convivência com a fístula urinária causa grande apreensão, ansiedade e desconforto clínico, o exame geral e as condições locais que envolvem os tecidos circundantes da fístula, têm papel capital na decisão do melhor momento para se abordá-la cirurgicamente.
Se a melhor opção for retardar o momento da cirurgia, deve-se reconhecer que as perdas urinárias contínuas provocam enorme desgaste social e pessoal durante a espera, devido às intratáveis perdas urinárias provocadas pela fístula, com marcante desabilitação pessoal e social.
Parte deste desgaste pode ser contornado, com o uso permanente de sonda vesical, que pode minimizar as perdas urinárias, dependendo da localização do orifício fistular.
Atualmente, nossa recomendação é o tratamento precoce e imediato, desde que as boas técnicas da sutura cirúrgicas sejam obedecidas, atingindo-se níveis de sucesso iguais aos observados com as técnicas anteriores, muito próximas de 100%.